domingo, 8 de agosto de 2010

Início das férias - parte 3/3 (Nanjing 南京)

Bom, após Hangzhou fui-me para a última cidade no meu roteiro das férias no sul da China antes de voltar a Beijng, Nanjing (南京), capital da China por muitos séculos antes de Beijing tomar o seu posto. Passei 6 dias lá e para mim foi a cidade mais interessante das três que eu visitei. Um dos motivos foi que pela primeira vez eu estava completamente sozinho, para visitar tudo, comprar passagens, viajar, reservar hotel, etc. Mas o principal motivo foi a relevância histórica do local porra! Não apenas a cidade foi capital por mais tempo que Beijing como mesmo depois de perder seu status foi palco de eventos importantíssimos nos séculos 19 e 20.

Para começar, a cidade ainda preserva dois terços de sua muralha. Enquanto pouco menos de um século de guerras e revoluções conseguiram arrasar com quase toda a muralha de Beijng, em Nanjing ainda é possível ver a maior parte da maior muralha cercando uma cidade já construída no mundo. Segundo o Museu da Muralha de Nanjing, a segunda maior é (era) a de Paris e a terceira é (era) a de Beijng. Está certo que existem cidades na China que ainda possuem a muralha inteira, como Xi`an (西安), mas não tão imponente como aqui. Além do mais, ainda é possível ver vários dos portões. A rua que corta a cidade e leva até o portão mais meridional da cidade, o Zhonghuamen (中华门), secciona-se logo a sua frente e atravessa a muralha através de 2 portões novos construídos à esquerda e à direita do mesmo (Zhonghua Leste e Zhonghua Oeste), de forma que o portão foi transformado em um espécie de parque/museu. Lá é possível ver como o portão (assim como vários outros de Nanjing) possui na verdade 4 portões. Caso o inimigo consiga passar pelo primeiro ainda tem que atravessar mais três até conseguir entrar na cidade, enquanto isso dê-lhe flecha de cima do muro!

A nordeste da cidade fica a Montanha Roxo-Dourado (紫金山), onde se localizam nada menos que três dos maiores atrativos da cidade. Mais a leste fica o Templo do Vale do Espírito (灵谷寺), construído em homenagem ao monge Xuanzang (玄奘), que inspirou o romance que eu estudei na monografia, o Viagem ao Ocidente (西游记), hehe. No centro fica o Mausoléu do Sun Yatsen (Sunzhongshan em mandarim 孙中山), o "pai" da república chinesa. O cara foi o principal líder do movimento revolucionário que derrubou o regime imperial chinês em 1911 e instaurou a república na China, e tanto o Partido Comunista quanto o Guomindang, que se engalfinharam até a vitória do primeiro em 1949, concordam com a importância dele. Já na parte mais ocidental da montanha fica um enorme tumba imperial da dinastia Ming construída no século 14.

Mas para mim o ponto alto da visita a Nanjing foi o Memorial do Massacre de Nanjing. Em 1937 o exército japonês, que já havia invadido a Manchúria em 1931, invadiu Nanjing com ordens de não fazer prisioneiros, de modo a causar um impacto psicológico tão grande nos chineses que abalasse completamente sua moral e destruísse completamente sua capacidade de defesa. A cidade ofereceu pouca resistência, e após sua conquista seguiu-se um período de mais de 1 mês em que se consumou o chamado "Estupro de Nanijing". As estimativas são de que 300 mil pessoas tenham sido mortas nesse período, entre soldados, mulheres, crianças, velhos, etc. Isso sem contar todas as demais atrocidades cometidas, como os estupros em massa, decapitações e enterramentos com as vítimas ainda vivas. O memorial é repleto de materiais e informações documentando o que se passou, e após quase 3 horas ali dentro sai me sentindo muito mal com o que o ser humano é capaz de fazer... Alguns destaques meus:
- Ficou famosa na época no Japão a competição entre 2 oficiais para ver quem cortava 100 cabeças primeiro. Quando o placar chegou a 106 x 104 eles não conseguiram decidir quem chegou primeiro, então resolveram ir até 150. É possível no memorial ver as fotos dos dois posando com as espadas em frente às cabeças tiradas para um jornal.
- Após um certo tempo os japoneses se deram conta de que os estupros estavam fora de controle e criaram "bordéis" pela cidade para satisfazer a soldadesca. As mulheres ali eram vítimas que já haviam sido estupradas antes e agora eram forçadas a ficar presas nesses locais servindo os soldados o dia inteiro...
- Há uma seção do memorial dedicada a homenagear os estrangeiros que viviam na cidade na época e criaram uma zona internacional desmilitarizada para proteger os civis, que acabou salvando cerca de 200 mil chineses. O principal homenageado é o alemão John Rabe, diretor da Siemens na China e (ironias do destino) membro do partido nazista. Mesmo antes da criação da zona internacional ele abriu sua fábrica para abrigar refugiados que foram salvos devido às bandeiras nazistas ali presentes, já que a Alemanha nazista era aliada do Japão. Quem diria que o local mais seguro durante o massacre era justamente embaixo da suástica nazista... Depois de voltar para Alemanha o cara foi acusado pelos nazistas de colaborar com os chineses, após a segunda guerra pelos aliados de ser nazista... Morreu pobre e esquecido e só depois de muitos anos foi descoberto o diário em que ele narra o ocorrido em Nanjing, que posteriormente foi publicado e mais recentemente virou filme (recomendadíssimo, vai ai um link para o trailer: http://mais.uol.com.br/view/a56q6zv70hwb/trailer-do-filme-john-rabe-04023564D0B93366?types=A&)
- Até onde eu sei, o governo japonês nunca reconheceu totalmente o massacre, e nas escolas japonesas passa-se reto por esse assunto (assim como aqui tem gente que nunca ouviu falar no massacre de Tian`anmen). Assim como em relação aos campos de concentração nazistas, existem os revisionistas japoneses que se especializaram em negar as atrocidades cometidas pelo Japão durante a invasão da China, que incluem além do massacre de Nanjing os laboratórios montados na Manchúria que testavam armas biológicas em prisioneiros chineses.
- Por fim, só quero expressar sensação de desamparo que eu senti após o memorial. O triste é perceber após alguma reflexão que não são os japoneses as criaturas capazes de tantos atos de barbárie, mas sim o ser humano como um todo. Quantos massacres não ocorreram antes deste realizados pelas mais diferentes civilizações pelos motivos mais bestas possíveis. E o holocausto judeu que viria logo depois, ou, para dar um exemplo mais próximo, o grau de sofisticação que atingiram os torturadores das ditaduras na América Latina na segunda metade do séc. 20 nas técnicas de inflingir o máximo de dor possível em outros seres humanos, técnicas estas exportadas e utilizadas mais recentemente pelos EUA no Iraque e Afeganistão. Eu sei que soo (sem crase né?) pessimista, mas o ser humano é o único animal na natureza capaz de cometer estas atrocidades, e parece que não está disposto a para tão cedo. Não importa o quão baixo o ser humano possa chegar, ele (nós?) sempre conseguimos descer mais um pouco...

No último dia em Nanjing visitei o cemitério dos mártires, um museu construído em uma montanha onde foram executados diversos membros do partido comunista antes de 1949, durante o governo do Guomindang. O museum consiste em fotos e biografias de vááááários membros do partido comunista que foram mortos até 1949. O mas interessante do lugar é a parte dedicada ao Mao, repleta de fotos, souvenires, DVDs, CDs, livros e uma estátua para tirar foto com incenso aceso na frente, que nem as estátuas nos templos!

Bueno, e depois disso voltei para Beijing, comprei minha passagem para o Vietnã e para lá me vou dia 10. Já estou de visto pronto e com 3 milhões no bolso do dinheiro local (equivalente a uns 350 reais!). Durante esses dias que eu passei aqui entre a minha chegada de Nanjing aproveitei meu quarto novo para assistir vários filmes (inclusive o ótimo "Estômago", brasileiro), dei uma banda de bicicleta pelo centro da cidade e passei por ai com um ugandense e uma uruguaia que eu conheci no hostel em Hangzhou. Provavelmente meu próximo post seja só em setembro, quando eu voltar a Beijing.

7 comentários:

  1. Ae man...
    Kra, fazia mto tempo q naum visitava teu blog, voltei a acompanhar meu fio!!!

    Se o próximo post vai ser em setembro, vou ter tempo de ver os que eu perdi!! >D

    Abração Cusco!!! Boa viagis e bons estudis por aízis!!! <D

    ResponderExcluir
  2. É realmente triste saber, cada vez mais, das atrocidades que a raça humana é capaz. to boba aqui com tudo que descreveste!

    E bah..Vietnã, tche?! Muito bom!Vou esperar o teu proximo post falando de lá, tenho extrema curiosadade por este país, mas sei mto pouco.

    Te cuida...e boa viagem!
    Beijos

    ResponderExcluir
  3. Ae rapaz! Desencantou o blog enfim hehe. Boa sorte no resto da tua jornada aí. Saudades e até mais! :)

    ResponderExcluir
  4. Que história!!!!!Parece que ouvia a tua voz, como relatas o teu mode ver os fatos muito "Daniel na maneira de ser" tenho muito orgulho de ti e muitas saudades.Bj Nete

    ResponderExcluir
  5. Antes de ler este post fui ver as fotos no teu orkut. Todas belas, as das duas primeiras cidades então, lindíssimas. Quando vi as da última cidade já fui me preparando para o que iria ler... Resumindo: a crueza da tua narrativa, aliada a tua indignação e a minha sensibilidade pra coisas desse tipo, fizeram com que eu tivesse que parar umas duas vezes de ler o post pra dar uma arejada na cabeça e fumar um cigarro. Incrível o que narraste, e confesso o meu (quase) total desconhecimento sobre o assunto. Já tinha ouvido falar do filme - que eu ainda não vi, mas já vou procurar no makingoff pra baixar -, mas nunca havia lido nada de específico a respeito. Uma experiência aterradora, mas uma grande experiência. Obrigado por compartilhá-lha conosco. Esse tipo de alerta nunca pode cessar!

    Espero que estejas bem aí no Vietnam e que não estejas passando muito calor. Aguardando ansioso pelas fotos e pelos textos da viajem.

    Abração meu caro

    ResponderExcluir
  6. Mas ô cabra bão, sô!
    Há como não se ter orgulho de um moleque desses? Um texto de chorar.
    Senti o mesmo quando visitei um campo de concentração na Áustria: uma mistura de nojo com raiva, daquelas que dá enjôo. Mas não era enjôo de náusea, e sim uma repulsa por aquela monstruosidade que a só estupidez humana é capaz de produzir. Uma experiência inesquecível, mas necessária.
    Parabéns pelo texto, Cusco.

    ResponderExcluir
  7. Caramba! Aristóteles estava mais do certo: Se queres saber a verdade, viaje! Está muito bom poder te acompanhar nessas linhas, pelo Oriente, a mim, tão desconhecido. Grande abraço!

    ResponderExcluir